A "Banda d'Além"
A nossa história
A margem esquerda do Tejo em frente a Lisboa foi inicialmente conhecida por “Outra Banda” e, mais tarde, a partir do século XVI, por “Banda d’Além”. É uma região carregada de história, que todos os povos que a habitaram souberam agradecer, mas que poucos portugueses do século XXI conhecem e reconhecem.
Os romanos deram-lhe tanta atenção, que aí construíram o porto fluvial de Aquabona (ou Equabona), perto da foz do rio Coina. Assumiu grande relevância na época, pois daí partiu, segundo o “Itinerário de Antonino”, a primeira via militar romana da Lusitânia — a Via XII — que uniu a capital Emerita Augusta (Mérida) a Olisipo (Lisboa). Terá sido um porto essencial para fazer chegar a Lisboa muitos dos produtos agrícolas da região, que a partir daí tiveram como destino as terras do Império, e terá sido fundamental para abastecer a capital da Lusitânia. O vinho, o azeite e o garum foram dos produtos agrícolas mais transacionados, a ponto de se justificar a construção, na área, de grandes centros oleiros de fabrico de ânforas, necessárias ao seu transporte.
No período árabe, menos conhecido historicamente, terá sido um importante centro populacional, como o demonstram os topónimos Almada, Alburrica, Azeitão, Alcochete, entre outros. Foi, igualmente, um proeminente centro de produção agrícola, sobretudo azeite, frutas, figos e uvas em passa e, quiçá, vinho. Também o sal, como as salinas de hoje ainda testemunham, e o ouro, da renomada mina da Adiça, foram produções proeminentes. A tradição marítima dos Árabes e a sua experiência em construção de grandes barcos fez com que o estuário do Tejo e os seus esteiros navegáveis se enchessem de barcos do Mediterrâneo e valorizassem, especialmente, o rio Coina, pois era o local mais seguro de todo o estuário para abrigar as embarcações das borrascas e para instalar estaleiros navais. Assim, não é de excluir que a Muleta do Tejo, barco tradicional do Barreiro, e a faina marítima da comunidade camarra se tenham inspirado na vocação naval dos Árabes, que perdurou durante quatrocentos anos na região.
Com a conquista de Lisboa, em 1147, a região sofreu profundas transformações, tendo sido confiada a sua administração à poderosa Ordem de Santiago. A produção agrícola continuou, com especial relevância para o vinho. De igual modo, reforçou-se a atividade marítima, passando o rio Coina a servir de berço à génese da marinha portuguesa, de ancoradouro às esquadras navais de D. Fernando, D. João I e D. Afonso V e a ser o palco de um importante centro de construção naval, dados os grandes recursos florestais da zona, especialmente em pinheiro manso e sobreiro. Embora os dados sejam escassos, há indícios suficientes para acreditar que muitas das caravelas e naus da gesta marítima tenham sido parcialmente construídas nos estaleiros da Telha, de Paulo da Gama, irmão do grande navegador.
A facilidade de acesso fluvial a Lisboa e os recursos naturais da “Banda d’Além”, particularmente os da margem direita do rio Coina, terão sido essenciais para a construção de infraestruturas essenciais à epopeia marítima, de que se destacam: 1) Fornos de Cerâmica d’El Rei, construídos em 1450 na Real Mata da Machada, 2) Fornos de Biscoito do Vale do Zebro, construídos em 1488, 3) inúmeros Moinhos de Maré e 4) Real Fábrica de Vidros de Coina, construída em 1498 e protegida por D. João II. O vertiginoso crescimento da atividade naval, a partir do século XIV, exigia cada vez mais recursos e a “Banda d’Além” sempre esteve à altura das solicitações. A produção de vinho, controlada pelo Mosteiro das Santas Comendadeiras de Coina — mulheres, filhas e viúvas dos cavaleiros da Ordem de Santiago — terá crescido significativamente, não só para abastecer as caravelas e as naus, mas também para exportar para a Europa Central. Os doces vinhos “bastardos”, feitos com passas de uvas da casta Bastardo, rapidamente ganharam fama europeia, ombreando com os melhores do Médio Oriente e da Andaluzia. Desde então o “bastardinho” tornou-se um símbolo da região, principalmente no antigo concelho do Lavradio.
A Quinta da Estalagem
Desde a Idade Média que toda a região do Lavradio, Verderena e Palhais era famosa pelas suas belas quintas, cheias de vinhas, pomares, imponentes casas de veraneio e, algumas até, com cais privativo. Fizeram as delícias de D. João II e do seu séquito, que aí se deslocava frequentemente. D. Pedro II elevou o Lavradio a vila e sede de concelho, em 1670, e doou-o a Mendonça Furtado, Vice-rei da Índia e 1º Conde do Lavradio. O concelho, incluindo Palhais, perdurou até 1836, sendo integrado no de Alhos Vedros, até 1855, e desde então no do Barreiro.
A Quinta da Estalagem é uma das poucas que resistiu à devastação rural que a região sofreu com o desenvolvimento industrial do século XX. Tem uma vetusta história, infelizmente ainda por reconstituir. Deve o seu nome à estalagem do porto de Palhais, quando o tráfego fluvial encaminhava para Lisboa, através de Coina, a maior parte das mercadorias e da população a sul do Tejo. Aí pernoitava muita gente, que por vezes tinha de aguardar várias horas para que a maré fosse propícia à navegação. Não é certo quando foi construída, mas é provável que tenha sido no século XVII, quando a estalagem de Coina, das Santas Comendadeiras, deixou de ter o exclusivo. Também se desconhece quando deixou de receber hóspedes, embora se admita que tenha sido no século XIX.
O assoreamento continuado do rio Coina, fruto do desflorestamento, das searas de arroz e de alguns movimentos tectónicos, foi agravando a situação, fazendo com que parte do tráfego, a partir do século XVI, fosse desviado para Moita, Alhos Vedros e Aldeia Galega (Montijo), embora o porto de Palhais se tenha mantido ativo até ao século XX.
A atual quinta foi comprada por Adelino Martins, avô do proprietário (com o mesmo nome), em 30 de dezembro de 1938. Catorze anos mais tarde, comprou a quinta contígua, tendo em vista explorar os três antigos e gigantescos fornos de cozer a cal lá existentes, que remontam, pelo menos, ao século XVIII. Foi da junção das duas quintas que resultou a atual Quinta da Estalagem, com quase 5 hectares, toda murada, com paredão para o rio Coina e com cais privativo, já desativado. Os fornos da cal foram explorados durante algum tempo em sociedade entre o avô Adelino, o seu cunhado e sua sogra, Adelina Martins. Passados alguns anos desfizeram a sociedade e o avô Adelino passou a gerir os fornos sozinho, tornando-se um exportador de média dimensão. Os seus principais clientes eram das antigas colónias, pelo que os tambores de cal eram transportados no varino da casa — o famoso Capelinhos — para o cais de Alcântara, sendo depois passados para os navios que os levavam a África. Na essência, era um percurso análogo ao das pipas de vinho, que a partir da Idade Média começaram a sair da “Banda d’Além”, primeiro para a Europa e África e depois para a América e Ásia.
Na Quinta existia uma pequena vinha, no espaço hoje ocupado pela piscina, e uma monumental adega de idade (ainda) desconhecida com inúmeros tonéis, cujas capacidades variavam entre os 15 e 20 mil litros. A vinificação na adega, feita no velho lagar de pedra calcária, contemplava uvas próprias e compradas. Depois do vinho pronto, era vendido a granel ao Fortunato, um negociante do Barreiro. É provável que também fosse feito vinho moscatel para a família, pois existem rótulos antigos de um “Moscatel Especial”. Se tal aconteceu, seria feito com uvas provenientes da Quinta de São Vicente, em Coina, de uma vinha plantada pelo familiar Manuel Martins Gomes Júnior, mais conhecido por Martins de Coina.
Tendo em conta que a adega é banhada pelas águas do rio Coina na maré alta, tem apreciável dimensão e já existia no século XVIII, isto é, antes do oídio ter destruído grande parte das vinhas da região, decerto que aí se produziriam elevados volumes de vinho, que seriam carregados em pipas e transportados desde o porto de Palhais até ao de Lisboa. É até possível que fosse uma das quintas referidas no “Livro das Grandezas de Lisboa”, de 1620: onde se dão muitos bons vinhos de carregação em pipas para a Índia e Brasil […] exportação de muitas quintas de boas vinhas, […] e há bons vinhos e muita lenha de pinho, de rama e tronco, que as barcas levam para Lisboa.
Em 2017, Adelino Martins neto, decidiu retomar a tradição vitícola de Palhais e plantou uma vinha com cerca de 0,5 ha de Bastardo e 1,5 ha de Fernão Pires. Estava dado um passo de gigante para fazer renascer o Bastardinho do Lavradio. O terreno, a poucas dezenas de metros do rio Coina, tem o perfil típico dos solos entre os estuários do Sado e Tejo, com areia à superfície e barro no subsolo, proporcionando condições excecionais para a produção de uvas de qualidade e vinhos de excelência. Adelino Martins tem vendido as uvas a uma grande empresa da região, mas desde 2022 que parte é vinificada na quinta para fazer renascer a tradição vitícola de Palhais.
Vinhos Históricos na Quinta da Estalagem
O desafio de “ressuscitar” o Bastardinho do Lavradio e de retomar a tradição vitícola da região de Palhais é a grande motivação deste projeto. No entanto, tendo em conta o longo tempo de envelhecimento de um vinho licoroso de qualidade, considerou-se essencial criar outros vinhos, que pudessem chegar ao mercado mais rapidamente. Dada a riqueza histórica da “Banda d’Além”, a diversidade dos seus vinhos, a patine histórica da Quinta da Estalagem e, naturalmente, a sua pequeníssima área de vinha, considerou-se apropriado e desafiante replicar os estilos de vinho que ao longo dos séculos foram produzidos na região.
É, portanto, um projeto vocacionado para a produção de vinhos com aromas e sabores de outros tempos, que ao primeiro gole podem parecer estranhos, pois como afirmava o célebre Professor Émile Peynaud, da Universidade de Bordéus e um dos grandes enólogos do século XX: “Não se devem provar os vinhos de uma época com o palato de outra”. É, pois, imprescindível explicá–los, de acordo com o princípio de que só se gosta, ou se aprende a gostar, daquilo que se conhece.